sexta-feira, 8 de maio de 2009

Fim do Mundo



Ca estamos de volta e desta vez vou falar do Fim do Mundo. Isso mesmo, com letras maiúsculas porque não se trata de previsão bíblica, mas apenas de um lugar muito especial no sul da Argentina. Na verdade, não devo falar apenas 'no sul da Argentina'. Isso é muito pouco para podermos descrever a cidade (Ushuaia) mais austral do mundo. Isso mesmo, o local permanentemente habitado mais ao sul do planeta. Abaixo do paralelo 42, se não me falha a memória, e isso tem várias e sérias implicações, ao menos para quem mora lá ou deseja visita-la. Vejamos:
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Carnaval com grana. Sim, isso é dificil acontecer, mas nos permitiu comprar o primeiro passeio 'exótico', com direito a uns dias em Buenos Aires e El Calafate. Depois eu falo mais sobre esta última cidade - bem bacana, por sinal - porque tenho muito texto ainda pela frente.
Bem, era algo que eu sempre quis fazer, ir até o ponto mais ao sul do continente. Desde pequeno eu olhava o mapa e imaginava o que poderia ter lá na tal da Terra do Fogo. Afinal, porque alguém chamaria um lugar presumivelmente MUITO frio de terra do fogo? Vulcões? Podia até ser, afinal a cordilheira dos andes acaba por alí...
Daí chegamos na primeira informação interessante e veio novamente dos famosos exploradores espanhóis (lembra deles em Monte-VI-DEO?): diz-se que o nome é de autoria de Fernão de Magalhães, aquele famoso explorador português e primeiro quase circunavegador da terra. O coitado morreu no caminho, mas o relato da aventura é incrível (vide leitura sugerida: Além do fim do Mundo). Ele estava a serviço da coroa espanhola buscando uma passagem alternativa para as Indias Ocidentais sem ter de passar pelo Cabo das Tormentas. Navegando pela costa americana, ele e a tripulação viam do convés do navio, de noite, muitas fogueiras acesas na praia. Não podiam imaginar que aquela terra, fria pra dedéu, podia ser habitada. Os marujos supersticiosos especularam um monte de coisas: pensaram que fossem espíritos malígnos, dragões e bichos estranhos, ou furos na 'beirada do planeta' (estamos falando de 1519, quando não se tinha certeza que a terra era redonda)- etc, etc. Mas, para encurtar a estória, no fim o lugar ficou com o nome de 'Tierra del Fuego' - espanhol mesmo, no original - e, seus habitantes, os 'Fueguinos'. Esses caras, os índios, deram origem a muitas lendas. Apenas para se ter uma idéia, eles não tinham pêlos, andavam descalços e não usavam roupas nem no inverno. Tinham lá uma manta precária de pele animal que parecia mais um cobertor de indigente e enfrentavam o frio passando óleo de baleia no corpo com areia (imagine a cena...rs). Moravam em tendas igualmente precárias, eram baixos, fortes e pescavam leões marinhos de mais de meia tonelada em canoas feitas de pele! Dizem que a última índia 'pura' morreu há poucos anos. Mas houve tempo, ao menos, para o homem branco 'catalogar' bem a espécie antes de dizimá-la. A teoria mais aceita, diz que esse povo viveu na região durante dez mil anos e demorou menos de cem para serem exterminados pelo homem branco, após o início da colonização da área. É um caso clássico da antropologia. Museus, livros e até e filmes foram feitos sobre os antigos habitantes da região:
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Pois bem, voltando ao lugar, podemos dizer que a Terra do Fogo, o Fin Del Mundo, ou simplesmente Ushuaia (a pronúncia do 'sh' é com som 'z' e não 'ch') é uma região de intenso contraste. É o Alasca sul americano e não fica devendo nada a ninguém. Para se ter uma idéia, é uma das pouquíssimas regiões do mundo onde se pode esquiar 'ao nível do mar'. Cerro Castor é o ponto de referência para o esporte. Do quarto do nosso Hotel víamos o mar e, ao fundo, a Cordilheira dos Andes, com vários picos cobertos de neve.
Quem tiver ímpeto aventureiro e deseja ver o 'lado selvagem da vida' deve fazer dessa viagem destino obrigatório. É possível acampar nos parques nacionais e o visual é deslumbrante. Voce tem contato direto com os extremos do planeta, como por exemplo, temperaturas baixíssimas, ventos que 'descem' do céu com tanta fúria que espalha um 'quarteirão' de árvores pelo chão, além das clássicas mudanças repentinas nas condições meterológicas. Tem vários glaciares na região próxima a cidade que matêm micro-climas próprios. Para quem nunca esteve próximo de um glaciar* (massa gigantesca de gelo que se forma com a neve acumulada sobre as montanhas e desce em paredões por força da gravidade) e deseja saber como é a sensação térmica, basta tomar um ducha fria e se trancar por uns trinta minutos, ainda molhado, num freeser.
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A região tem muitas baías (Baia Lapataia, p ex.), penínsulas e montanhas. Uma floresta exuberante nas areas mais baixas e fauna diversificada. Vale a pena passar no Museu de História Natural para ver os vários espécimes: de tatarugas a pinguins, todos gigantes, e outros tantos bichos empalhados. Vários extintos por força da ação do homem, mas hoje em dia ainda pode se ouvir as batidas dos pica-paus que proliferam na mata. Para piorar, alguns idiotas pensaram em faturar uma grana com peles de castores, trazidos do Canadá. Esses bichos acabaram fugindo do cativeiro e, como não tem predadores naturais na região, proliferaram. Por natureza, fazem diques, que por sua vez formam grandes lagos, matam muitas árvores e forçam outros animais silvestres a abandonar o local. Teve situação semelhante com coelhos que também viraram uma praga. Teve ainda pesca predatória, matança de aves etc etc. A Terra do Fogo só está de pé por milagre.
Lembramos ainda que a região foi objeto de contenda entre a Argentina e o Chile. Fato que obrigou o Papa a intervir na solução. Para não ter mais problemas com posseiros e colonizar a terra, o governo argentino criou uma prisão, hoje desativada. Conta-se que muitos presos, inclusive da época da ditadura, após fugirem, passavam tanta fome e frio na floresta que pediam encarecidamente para voltar as suas celas. É zona franca!, com ofertas irresistíveis de vários produtos, desde vestuário a bebidas e perfumes. Trajeto contumaz de cruzeiros que vem de Buenos Aires e Punta, o Canal de Beagle (navio no qual Darwin passeou por tres anos) liga o Atlântico ao Pacífico e ainda é berço esplêndido de colonias de leões marinhos, focas animadas e muitos pinguíns. No Carnaval a temperatura gira entre zero e dezesseis graus Celcius. Tem muitos bares, cafeterias e apesar da cidade não ser a mais bonita do mundo, tem lá seus encantos. Faça todos os passeios disponíveis, mas verifique antes com a operadora, pois uns e outros podem ser a mesma coisa, com nomes diferentes. Se voce quer ter uma breve noção do que se pode fazer no Ushuaia, veja só este video:
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Para terminar recomendamos que deixem os testamentos prontos antes da viagem: as condições de pouso em Ushuaia podem ser horríveis, com muita neve e vento. Os pilotos da Aerolineas argentinas são bosn, mas os aviões... Nosso voo taxiou na pista e foi até a cabeceira, pronto para decolar. Após alguns minutos, voltou a plataforma e desligou os motores. Nisso veio um 'tiozinho' de macacão, com uma maleta e uma escada. Todos a bordo sem entender nada... O cidadão encosta a escada na asa, pega um martelo e dá-lhe cacetadas. Pléin, pléin, pléin... Coça a cabeça, olha para o piloto e dá sinal de ok, com o polegar. Tira a escada e vai embora, enquanto o avião seque para a pista de decolagem e nós rezamos sem saber o que vai acontecer. Afinal, o destino era mesmo o fim do mundo. : )

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